"Há momentos na vida em que desejamos simplesmente que tudo acabe.
Momentos em que desejamos apagar o passado, ignorar o presente e abandonar o futuro. Mas tomar uma estrada sem volta talvez não leve a lugar nenhum.
A única saída é deixar tudo para trás e viajar sem destino, sem dinheiro, sem nada. Porque uma viagem sem destino é um suicídio sem morte, é uma fuga em que o perseguidor é o próprio fugitivo, é se perder para se encontrar, é alcançar o horizonte sem saber que é impossível, e é a única chance de alguém que quer morrer... viver de verdade"
O livro narra a história real de alguém que tentou fugir da realidade. Mas para onde se pode fugir quando o que o persegue está cravado em seu peito? Até onde se pode chegar quando o dinheiro acaba e tudo o que resta é a roupa do corpo e uma surrada mochila, que carrega o peso de uma desilusão amorosa, o desprezo de um pai e a culpa pela morte do melhor amigo?
O autor tentou fugir escalando o selvagem Monte Roraima, navegando para uma paradisíaca ilha do Caribe, cruzando a selva amazônica, seguindo os trilhos da morte da Madeira - Mamoré, buscando proteção nas muralhas de uma fortaleza perdida nos confins do Brasil, pegando carona nas estradas mais remotas, pedalando uma velha bicicleta pelo Pantanal, caminhando 400 quilômetros pelas tortuosas vias do Caminho da Fé, tentando se perder na multidão da festa dos bois de Parintins e dos touros do rodeio de Barretos, se enterrando em um cemitério abandonado de uma cidade fantasma, dormindo nas ruas entre mendigos, acampando no mato entre malucos na grande Chapada dos Guimarães... e encontrando, pelo caminho, pessoas incríveis que lhe ensinaram a ter a coragem necessária para nunca mais fugir da vida. Pessoas que lhe mostraram o caminho que o levaria à paz de espírito, em algum lugar, “além do horizonte”...
sexta-feira, 24 de abril de 2009
Prefácio
Adiante estava a última fronteira. Para trás só havia o rastro
de um passado que desejava apagar: amores fracassados,
sonhos não realizados, culpas não perdoadas. Eu havia chegado
a um ponto em que todas as mentiras soavam como verdades e
em que todas as verdades já não importavam mais.
O que eu deixava para trás? Deixei minha noiva embarcar
em um avião sem passagem de volta. Deixei as palavras de um
pai decepcionado: “Você é pior do que um mendigo, porque
um mendigo explora quem não conhece, enquanto você explora
quem te ama”. Mas o pior de tudo foi ter deixado o meu melhor
amigo morrer...
Naquele dia, minha vida inteira cabia dentro de uma
surrada mochila. Todas as minhas esperanças estavam
depositadas dentro dela. Joguei tudo o que havia me restado
sobre a mesa do posto de inspeção. O ganancioso guarda da
fronteira perguntou se eu levava algo de valor. Respondi que
não. Ele não acreditou, revistando-me dos pés à cabeça. Depois,
olhando para o companheiro de farda, disparou desapontado:
“Este garoto não tem nada, pode deixar ele ir embora”. Seu
fuzil enferrujado apontava para o vazio. Quisera ele me
executar, talvez não fizesse diferença, porque eu não tinha mais
nada a perder. Mas ele me deixou partir.
Respirei fundo e cruzei a última fronteira, sem olhar para trás.
1º Passo
(...)
No horizonte, o monte Kukenán se deitava sobre um fino
manto de nuvens. Uma gigantesca cachoeira despencava de
seu cume, formando um delicado fio de lágrima em sua dura
face de pedra. O rio Tek serpenteava, carregando fragmentos
de rocha. Com paciência, o rio moveria a montanha para o mar.
Corri para o rio que carregava o espírito das montanhas.
Banhei-me em um ritual de purificação. Não era apenas o corpo
que eu desejava lavar, mas principalmente a alma. E talvez fosse
este o significado daquele batismo selvagem: o ingresso para
uma nova vida, livre da roupa costurada com a agulha do
preconceito e a linha da falsa moral.
Retornando ao acampamento, meus companheiros já
estavam reunidos para o jantar. Ao longo da primitiva ceia,
deixávamos pequenas migalhas de quem éramos sobre a
“mesa”. Descobri que confidências feitas em lugares distantes
da civilização se revelam muito mais sinceras; talvez porque
na natureza selvagem esquecemos as mentiras que inventamos
para viver em sociedade.
De qualquer forma, não partilharei das confidências de
meus colegas aqui, pois entendo que sob tais circunstâncias
devo tratá-las mais como confissões, que não dizem respeito
ao resto do mundo. Porém, antes de me silenciar, devo contar
apenas um fato, por ser relevante àqueles dias. O aventureiro
finlandês revelou à mesa que “cagar dentro da água pura dos
rios lhe proporcionava uma sensação mística”. Quase cuspi a
água do rio que acabara de beber. A partir daquele momento,
sempre que ia pegar água ou me banhar, eu tomava o cuidado
de nunca permitir que ele ficasse próximo a mim dentro da água.
Durante a noite, fui atraído por uma luz que tentava varrer
um pedaço de escuridão. O guia e o carregador pareciam
agitados, iluminando um ponto no chão. O facho da velha
lanterna incidia em um buraco, atraindo gordas formigas que
eram rapidamente apanhadas pelas mãos da dupla. “Assim que
se faz para que a formiga não pique a sua língua”, o guia
explicava como saboreá-las. O que importava era o abdômen
polpudo, o resto era jogado fora.
As formigas mutiladas se acumulavam no chão, arrastando-se
desorientadas. Imaginei a sociedade humana como um
imenso formigueiro em que todos os indivíduos são atraídos
pela falsa luz do dinheiro, apenas para serem sugados e
descartados por ele mais tarde. Como uma formiga desse insano
formigueiro, gostaria de pelo menos ter a oportunidade de picar
a língua da sociedade, antes de ser devorado por ela.
Talvez fosse apenas a minha vontade de fugir do mundo
que me levava a tais pensamentos. Enterrei-me na barraca com
as minhas ideias tristes, tentando ter sonhos melhores. Sonhos
que não vieram.
(...)
2º Passo
(...)
Sentado no alto de um rochedo, eu contemplava um país
misterioso. Na língua indígena, Guiana significa “terra das
águas”, uma terra úmida que regava uma selva sem fim.
Enfeitiçado pelo chamado da floresta, caminhei até a borda do
abismo. Minha intenção era tirar algumas fotos inesquecíveis,
mas quase acabei caindo no esquecimento. Escorregando na
borda do penhasco, me vi pendurado em uma rocha, com os
pés flutuando no vazio. A pedra lisa não garantia apoio
suficiente para me impulsionar de volta. Um movimento mal
calculado me faria abraçar aquela selva para sempre.
Percebendo o perigo, o finlandês correu em meu socorro e me
puxou de volta à vida.
Por duas vezes aquela montanha havia me alertado. Um
passo em falso e tudo acaba. Um segundo e todo o tempo já
não importa mais. Ergui meus olhos e vi novamente a floresta.
Seu ar selvagem havia se multiplicado por mil. Aquela selva,
aquela montanha, aquela terra das águas, tudo se tornara ainda
maior. A consciência da morte expande a mente, valoriza cada
passo e intensifica cada segundo. Essa estranha adrenalina
injetada em momentos extremos é o que muitos buscam para
despertar. Mas seria necessário caminhar até o umbral da morte
para isso?
Meus olhos fitavam a grande selva da Guiana. Estava
assustado, não pelo fato de quase ter caído no precipício, mas
pela mórbida ideia que se passou em minha mente naqueles
poucos segundos. “E se eu me soltar? Descobrirei o grande
segredo da morte... Mas e se não houver segredo algum? E se
não houver nada após a vida? Não fará diferença, porque estarei
morto. Mas se eu encontrasse o paraíso?”. Meus pensamentos
foram interrompidos pela mão que me libertou dessas ideias
absurdas. Em segurança, com os pés fincados sobre a rocha,
meus olhos continuaram a namorar a grande selva da Guiana.
Em algum ponto daquele primitivo horizonte, o religioso
Jim Jones prometeu o paraíso aos seus seguidores. Quase mil
fanáticos se suicidaram ao mesmo tempo, acreditando que a
morte os conduziria a uma vida melhor. Que passagem macabra
para um destino incerto. Em algum lugar daquela selva estava
enterrada a grande dúvida do homem: o que há além do que
pode ser visto? O que há? Respirei a dúvida e enchi os pulmões
de esperança. Dei as costas à questão. Ainda desejava me
confundir por muitos anos, nesta doce incerteza chamada vida.
(...)
3º Passo
(...)
A felicidade com que elas se dirigiam ao mar era algo
comovente, que superava até a emoção do Caribe. Ah! O Caribe!
O mar azul, de um azul que se funde com o azul do céu. Aquilo
tudo me fazia crer que o azul era a cor do paraíso. Mergulhei
levantando a areia fina do fundo. A água translúcida permitia
que se vissem os peixinhos nadando, mas deixei de prestar
atenção neles para fixar meu olhar naquelas senhoras no mar.
Jogavam água uma na outra, como crianças felizes. Sorriam. O
sol iluminando a cena. É possível ser sempre feliz assim?
Flutuando no Caribe, com os olhos voltados para o céu, eu
acreditava que sim.
Íamos à praia pela manhã, levando sanduíches que
comíamos sorrindo na beira do mar. Até que um dia,
caminhando pela praia em direção a Pigeon’s Point, Sheila
perdeu o sorriso. Perguntei o que havia acontecido. “Passei
minha lua-de-mel ali”, ela apontou para um hotel, cuja varanda
se apoiava na areia da praia. Imaginei os momentos de uma
vida ao lado de alguém que partiu, mas cujas pegadas de amor
não foram apagadas.
Mesmo olhando para um hotel em que minhas lembranças
nunca haviam se hospedado, a voz do meu amigo Felipe ecoava
por aquelas paredes: “Vamos viajar juntos, já adiamos demais”.
Dois dias depois, ele sofreu um acidente fatal. Havíamos adiado
demais. As ondas varriam minhas pegadas, mas eu sabia que
havia caminhado por aquela praia. Talvez as pegadas possam
ser apagadas, mas os passos permanecem no coração.
Deixamos o hotel das lembranças para trás, buscando novos
lugares para hospedar novas alegrias, até que os dias das nossas
pegadas nas areias brancas se passaram. Sheila e Ver voltaram
para Trinidad. Ouvi de Ver na despedida: “Eu tinha dois filhos
adotivos...”. Passando a mão em minha cabeça, ela completou:
“Agora tenho três”.
(...)
4º Passo
(...)
Ela estava toda de branco. Vestia uma blusinha com uma
estrelinha azul estampada em meio aos seus delicados seios. A
blusinha era minúscula e deixava à mostra o umbiguinho
sensual dançando em sua cinturinha. Sua calça de lycra agarrada
ao corpo mostrava o delicioso contorno de suas coxas. Apesar
de vestida, parecia nua. Ou seriam os meus olhos que a despiam
naquele momento? Ela tirou um par de brincos da bolsa.
Dezenas de pequeninos corações azuis pendiam em cacho.
Talvez eles representassem o número de corações que ela já
havia conquistado. Uma coleção de amores falsos.
Olhando-se no espelho, ela tentou aninhar seus amores de
bijuteria entre os cabelos escuros como a noite selvagem,
cabelos lisos e macios como os lençóis em que ela se deitava
para fazer amor. Mas acabou desistindo de colocar os brincos.
Talvez quisesse uma joia de verdade. “Guarda pra mim?”, ela
sorriu, me entregando os corações. Guardei em meu bolso,
como se fosse um tesouro. E sem dizer mais nenhuma palavra,
ela segurou a minha mão e começou a andar colada a mim.
Simples assim, como namorados. (...)
Ela sussurrou em meu ouvido: "Vamos ao motel?"
Eu sabia que ela era uma profissional do amor. Sabia desde
a primeira vez que a vi. Ela ainda não havia estipulado um preço,
uma quantia para que eu me tornasse mais um coração em seu
brinco azul. Não respondi. Ela ficou calada por mais alguns
instantes, tentando encontrar palavras que nunca vieram. Seu
rosto queria falar, mas foi calado pelo seu corpo. “Vamos ao
motel?”, ela repetiu baixando os olhos, fingindo estar
envergonhada. Continuei calado ao seu lado. Em um segundo,
ela se distraiu e largou o meu braço. Quando ela se voltou para
mim, eu já não estava mais lá. Fugi. Fugi porque não queria me
tornar mais um coração falso em meio a tantos outros. E fugi
rapidamente, porque se não o fizesse, meu corpo me trairia.
A última noite de festa foi a mais solitária de todas... De que adianta
beijar todas as bocas do mundo, se nenhuma delas fala a língua
do amor? Senti saudades da minha ex-noiva, que estava do
outro lado do mundo. Na verdade, acho que senti apenas
saudades de ter alguém para amar. (...)
A grande apoteose da ilusão chegava ao fim. Milhares de pessoas
seguiram para o porto. Era hora de zarpar da ilha da fantasia e
voltar ao mundo real. Três dias e três noites haviam se passado,
sem que um único segundo fosse desperdiçado. Nas largas
águas do Amazonas, os barcos seguiam exaustos em uma triste
fila indiana... Caminhei pelo convés, segurando um par de brincos de
corações azuis. Caminhei em direção a uma garota de cara
inocente e corpo safado, encostada na amurada do barco. Ela
não quis pegar os brincos, mergulhando os olhos nas águas do
grande rio, que sonhava em ser mar. Existe pecado na
Amazônia? O corpo não comete pecado, o desejo não o faz
nascer, o sexo não o alimenta, o gozo não o sacia. O pecado
não está no corpo nem no que se faz com ele. O pecado está em
enganar a alma e fazer acreditar que há amor, onde não há.
(...)
5º Passo
(...)
Ele já havia procurado ouro em todos os cantos da
Amazônia. Brigou com índios e militares de três nações. Viu
gente morrer sem fazer falta a ninguém. Passou fome sem saber
que era fome e passou sede sem saber que era sede. Fome e
sede eram para os outros, não para os garimpeiros da selva
amazônica, porque o único alimento e a única água para estes
homens era o ouro. Mas isso era passado para ele. A sua
calejada mão pendia para fora da rede, balançando em tediosos
movimentos. O mesmo movimento da mão de um garimpeiro
em busca de ouro. Ainda que tremesse, sua mão continuava a
obedecer a um sonho que já havia morrido.
“Encontrou muito ouro?”, disparei a inevitável pergunta.
A resposta veio entre um balanço e outro de sua surrada rede:
“O suficiente para não desistir... e não o bastante para parar de
procurar”. O velho espichou a cabeça para fora da rede e olhou
para mim: “A vida é assim, meu jovem... nunca é o bastante
para parar de procurar”. No fundo de seus olhos vazios, pensei
ter enxergado o brilho de duas grandes pepitas de ouro. Talvez
no final, ele tenha descoberto que a sua própria busca era o seu
tesouro. Um tesouro chamado “razão de viver”. O garimpeiro
sorriu um sorriso dourado, e creio que todo o ouro que ele
encontrou em sua vida estava guardado naquele sorriso.
(...)
6º Passo
(...)
Cortando aquela estrada vicinal, o potente farol iluminou
uma placa que indicava: “Rolim de Moura”. E foi em um posto
dessa cidade que passei a primeira noite daquela carona. Tirei
do bolso um papel com um número de telefone. “Se vier para
Rolim, me liga”, um rapaz que conheci no rio Madeira havia
me convidado. Era um bom rapaz, cujo grande sonho era
conhecer o Pantanal. Passei grande parte da viagem de barco
tentando convencê-lo a cair na estrada comigo. Seus olhos
brilhavam com a possibilidade, mas logo se apagavam: “Mas
não tenho grana para ir”. E eu dizia que com certeza tinha menos
ainda. “Mas tenho que voltar pra casa”, ele desconversava. E
eu dizia que também voltaria depois de conhecer a Chapada, o
Pantanal e muitos outros lugares. “Mas...”.
“Mas” é uma palavra terrível demais para quem tem um
sonho. Olhei para o número em minhas mãos, mas não liguei.
Ele não iria comigo, porque o “mas” é uma palavra difícil
demais de se deixar para trás. Armei minha rede debaixo da
carreta, entre dois de seus nove eixos. Dormi feliz, porque o
“mas” não atormentava mais os meus sonhos.
(...)
7º Passo
(...)
Um soldado apontou o fuzil para a estrada e ordenou que
parássemos. Depois de verificar que não éramos inimigos, ele
nos deixou passar. Finalmente chegamos ao imponente Forte
Real Príncipe da Beira. Conversamos com o comandante do
quartel e ele permitiu que entrássemos na antiga fortaleza. Um
soldado pegou uma pesada chave de ferro e nos acompanhou.
Seu fuzil pendia no ombro como uma extensão de seu próprio
braço. Deixando o quartel do presente, a chave girou e abriu o
portão do passado. Ao penetrarmos pelo portal de pedra, duas
enormes corujas brancas piaram, como se estivessem
lamentando algo muito ruim. As maciças muralhas de dez
metros de altura intimidavam o medo. Aquela fortaleza tinha a
forma de uma estrela de quatro pontas. Uma estrela cravejada
no coração da selva.
O coturno do soldado golpeava o chão de pedra, fazendo
ecoar os passos do passado. Ele abriu um alçapão no centro da
fortaleza, afirmando que ninguém sabia para onde ele levava.
O poço desaparecia na escuridão. Para onde levaria? Ninguém
ousou descobrir. Seu segredo estava velado pelos antigos
fantasmas que a escavaram no coração do forte. Marchamos
até o baluarte que se projetava em direção ao rio Guaporé. Olhei
para os silenciosos canhões enferrujados que apontavam para
a Bolívia. O transporte daquelas armas desde o Velho Mundo
até aquele distante canto do Brasil demorou cinco anos,
cruzando o oceano Atlântico e subindo penosamente os rios
Amazonas e Madeira. Olhei as poderosas muralhas de pedra.
Toda aquela fortaleza havia sido construída pelo medo de que
um dia os inimigos viessem a atacar. Mas aquelas pedras
permaneceram em silêncio, esperando por séculos. Nada.
Aqueles canhões apontavam para um inimigo que nunca veio.
Para que o esforço da construção não fosse em vão, a
orgulhosa fortaleza foi convertida em vergonhosa prisão. As
grossas muralhas que haviam sido projetadas para proteger se
transformaram em muros para prender e torturar a liberdade.
Quão parecido com aquela fortaleza é o homem: temendo
inimigos inexistentes, construindo muralhas para se defender
e acabando prisioneiro de seu próprio medo. No fim, a velha
fortaleza sucumbiu. Não é mais forte. Não é mais prisão. É
apenas uma testemunha silenciosa, de algo sem explicação.
(...)
8º Passo
(...)
E no alto da montanha, vi alguém acenando para mim.
“Quem será?”, as palavras fugiram da minha boca. Apertei a
vista. O braço continuava a dançar no ar. Olhei para os lados,
não havia ninguém. Com certeza, aquela saudação era para mim.
Ergui o braço e comecei a agitá-lo alegremente no ar, com toda
a minha força. Fiquei feliz. Não estava sozinho!
Comecei a escalar o monte com os olhos fixos naquele
aceno. Escorreguei em uma pedra solta e caí. Quando levantei,
a saudação não estava mais lá. Talvez a pessoa que acenava
tenha percebido que seria um perigo me distrair ali. Era preciso
manter os olhos no caminho, para que eu não me perdesse no
abismo. Subi ansiosamente a montanha, até que finalmente
cheguei ao ponto mais alto do parque da Chapada dos
Guimarães.
Meus olhos correram em todas as direções. Não havia
ninguém. Um fino capim cobria todo o topo, e o vento fazia
com que cada haste agitasse suas folhas, como milhares de
acenos me saudando. Mas onde estava o aceno que vi antes?
Corri pelo capinzal. Corri tentando entender. Corri apenas
porque queria encontrar alguém. Então, enquanto corria, ouvi
uma voz trazida pelo vento. Caí de joelhos e chorei, porque
aquela era a voz do meu amigo que eu não conseguia mais ver.
Gritei seu nome. O vento soprou, carregando o meu chamado.
Uma sincera amizade nos ensina a conversar sem palavras.
Em um momento de alegria, um sorriso amigo multiplica a
felicidade. Em um momento de tristeza, uma mão amiga enxuga
a lágrima. Quando aprendemos a conversar sem palavras,
passamos a entender tudo o que o nosso amigo quer dizer,
apenas com um olhar. E depois que os olhares aprendem a
conversar, passamos a enxergar a verdadeira amizade. A partir
de então, podemos até fechar os olhos e sentir nosso amigo,
sem que ele esteja ao nosso lado, porque aprendemos que ele
já é parte de nós. E é assim que os amigos se tornam irmãos de
alma.
Deitei no capim e olhei para o céu azul. Minhas lágrimas
pararam de cair e meus olhos pararam de procurar, porque eu
não estava mais sozinho. Comecei a rir, a rir como eu sempre
ria ao lado do meu amigo. Eu não o via, assim como não via o
vento, mas sabia que ele estava lá. Ele nunca havia me
abandonado. Ele havia escutado o meu “sim”. E nós havíamos
chegado até ali... Juntos!
(...)
9º Passo
(...)
Ele nos falou sobre um lugar conhecido como o
Portão do Inferno: “Nesse lugar existe um precipício que atrai
a morte. Várias pessoas já se suicidaram nesse abismo”.
“Como?”, perguntei. “Ninguém sabe ao certo. Dizem que as
pessoas caminham até a beira do precipício, como se estivessem
em transe, depois tiram os sapatos e saltam”. Magno falava com
os olhos fixos na fogueira (...)
“Vamos lá”, eu queria descobrir a resposta. “Quando?”,
Clara perguntou. “Agora”, César estava animado. “Agora”,
concordamos. Magno checou o relógio e disse com um sorriso
enigmático: “Acho que chegaremos lá por volta da meia-noite”.
“Um brinde ao Portão do Inferno!”, uma garrafa de vodka
misturada com Coca passou de boca em boca. Beijei o gargalo,
mas não bebi. Enganei o diabo, porque não queria beber em
solo sagrado. Caminhamos pela rodovia banhada pelo luar. As
rochas que ladeavam a estrada pareciam sombras macabras de
um caminho maldito.
“Vamos tirar os nossos sapatos na beira do precipício!”,
alguém propôs. Concordamos gargalhando, como se
estivéssemos possuídos por um inexplicável desejo de provar
a nossa coragem. Ou seria tolice? A garrafa continuava a dançar
entre os vultos que caminhavam naquela noite. Alguns
quilômetros depois, avistamos a placa que apontava para o
nosso destino: “Portão do Inferno a 200 metros”(...)
Sentamos em uma rocha e começamos a falar sobre coisas
estranhas. “Quando Clara e eu estávamos
procurando um lugar para dormir no Peru, alguém sugeriu que
ficássemos em uma casa abandonada no meio de um bosque.
Só que coisas estranhas aconteciam por lá. Nossas coisas
mudavam de lugar durante a noite. Outras surgiam e
desapareciam. Não ficamos ali para descobrir o que causava
aquilo”(...) César se lembrou de mais uma história: “Na época do
terrorismo na Colômbia, um jovem de família muito pobre foi
recrutado para executar um atentado. Ele ficava triste ao ver a
sua mãe se lamentando diante da velha geladeira quebrada. O
rapaz decidiu comprar uma nova para ela e por isso aceitou
colocar uma bomba em uma rua de Bogotá. A bomba explodiu,
e ele pegou o dinheiro do atentado. Voltava feliz para casa,
imaginando a felicidade da mãe. Quando chegou, sua família
toda estava chorando. Sua mãe havia morrido naquele dia,
vítima de uma bomba”.
Quando César terminou de contar essa história, ele se virou
para Clara, mas ela não estava mais ao seu lado. “Clara?”
Estávamos tão entretidos com a história que não havíamos
percebido que ela havia se levantado. “CLARA?” Nossos olhos
a buscaram na tênue luz do luar. “CLARA!” Ela estava na beira
do precipício, olhando fixamente para baixo. César correu e a
puxou. “Quê?”, Clara perguntou desnorteada, como se estivesse
saindo de um transe.
Naquela noite, ninguém tirou os sapatos na beira do
precipício. Demos as costas ao Portão do Inferno, sem sequer
ter ousado espiar por ele. Voltamos em silêncio, respeitando o
que não podíamos compreender.
10º Passo
(...)
Tateamos nosso caminho até o Paredão do Eco. Gritávamos
na escuridão, ouvindo nossas próprias vozes repetidas pelas
rochas. Estávamos nos divertindo com isso, até o momento em
que ouvimos um som que não partiu de nenhum de nós. Parecia
o rugido de uma fera. Ficamos em silêncio, não ouvimos mais
nada. Deitamos na rocha nua, olhando para as estrelas no céu.
E sobre travesseiros de pedra, falamos sobre coisas absurdas,
porque estar ali já era absurdo. Estávamos vivendo o
impossível.
Longe das falsas luzes dos homens, as estrelas podiam
brilhar de verdade. Ou não? E pensar que muitas daquelas
estrelas sequer existiam. Depois que uma estrela morre, a sua
luz emitida em vida continua viajando pelo espaço, cruzando
milhares de anos-luz até chegar a um planetinha minúsculo do
sistema solar. Até quando as luzes daquelas estrelas mortas
viajariam pelo vácuo? Talvez essa fosse a ilusão da eternidade.
“Olha! Uma estrela cadente”, eu apontei. “E outra!” Quando
era criança, acreditava que tinha o direito de fazer um pedido a
uma estrela cadente. E muitas riscavam o céu naquele instante.
Deitado na dura rocha, eu sabia que eram apenas meteoritos se
incendiando ao entrar na atmosfera. Mas, naquela noite, eu
queria acreditar que as estrelas cadentes eram os sonhos do
céu caindo na terra. Adormecemos, cada qual em busca de suas
próprias estrelas cadentes.
(...)
11º Passo
(...)
Do outro lado do rio ficava o Mato Grosso do Sul. Fiquei
com vontade de ir até lá, mas do outro lado não havia mais
estrada. O chão acabou para mim. Era hora de voltar. Girei o
guidão e recomecei a pedalar. A placa indicava: “Poconé – 149
km”. E foi uma longa viagem de volta...
Não fiquei muito tempo no Pantanal. Por mais belo que
aquele lugar fosse, por mais emoções que tenha vivido entre
os jacarés, por mais que tenha enfeitado a minha alma com
revoadas de penas e bicos de todas as cores, eu sentia vontade
de voltar para casa. Peguei carona na caçamba de um velho
caminhão e vi o sol se pôr na estrada. E quando me dei conta,
já estava de volta. De volta à Chapada dos Guimarães. Por que
me sentia em casa naquele lugar?
Dividi as paisagens do Pantanal com os meus amigos da
Chapada. Camila e seu filho Isac ainda brincavam por lá,
enquanto César e Clara vendiam seus badulaques ao lado do
riacho, que havia sido testemunha de um ato heróico naquele
dia. Um homem havia tombado com a cadeira de rodas dentro
da água, e Clara ajudou a salvá-lo. Apesar do riacho ser raso, a
cabeça dele havia ficado debaixo d’água. Foi Clara quem puxou
o seu rosto para fora, até que outras pessoas chegassem para
ajudar a carregá-lo para fora de perigo. Clara ficou encabulada
com os agradecimentos fervorosos do homem que salvara.
Quando cheguei, ele já estava sentado em sua cadeira de
rodas, todo molhado e sorridente ao lado de sua heroína. Ele
realmente era um homem grato por estar vivo, porque mesmo
estando em uma cadeira de rodas, ele nunca deixou de procurar
novos horizontes. Nem ele, nem os seus companheiros daquela
excursão em cadeira de rodas, incluindo um homem que só
conseguia mexer os olhos. Mas tal era a expressão de seu olhar,
que ele conseguia sorrir sem mover os lábios.
Havia um outro rapaz que não precisava de cadeira de rodas,
mas que acompanhava o grupo. “As pessoas pensam que eu
estou com a minha mulher por pena”. Ela teve as pernas
amputadas em um acidente de carro em que ele estava ao
volante. “E eu cheguei a pensar que era por culpa”, ele baixou
os olhos. Sua esposa chegou sorridente com uma garrafa de
refrigerante e copos de plástico no colo. Ele beijou a fronte da
mulher e concluiu: “Mas depois de alguns anos, eu descobri
que era pelo mesmo motivo de sempre... Por amor”.
(...)
12º Passo
(...)
Nas ruas de Barretos, conheci uma legião invisível de
pessoas que vagam às margens da visibilidade social. Havia
em meio a este povo sem face, pessoas que não se deixavam
desaparecer por completo. Eram os vendedores de coisas que
ninguém queria. Todos depositavam uma esperança exagerada
na festa de Barretos, que fatalmente acabava em decepção. Um
desses vendedores carregava vários chapéus de caubói feitos
de lona de caminhão. O maranhense acabou batendo papo com
ele e acabou descolando um chapéu estragado para mim. E,
assim, com um chapéu de lona remendado na cabeça, eu entrei
oficialmente para a horda de caubóis sem cavalo. Caubóis sem
nada além do duro chão em que pisam e são pisados.
Já na minha primeira noite em Barretos, fui até a arena do
rodeio. Era terça-feira e a entrada era gratuita naquele dia. A
grande festa mesmo acontecia nos finais de semana, quando
os ricos fazendeiros iam acompanhados de suas belas mulheres
para ver os campeões. A arquibancada ficava quase vazia nos
outros dias, porque ninguém queria ver as eliminatórias.
Ninguém quer ver nem de graça os eliminados, os perdedores.
Todos pagam para ver a grande final, quando apenas os
vencedores ficam de pé no centro da grande arena. Este é o
mundo que aclama os vencedores e despreza os perdedores.
Naquela noite eu estava entre os perdedores, vendo os
touros pulando na arena, jogando os caubóis no chão. O locutor
berrava: “O CHÃO É O LIMITE”. E foram muitos os que
chegaram ao limite naquela noite, tanto na arena quanto fora
dela. Catadores de latinhas garimpavam os restos dos que
podiam festejar. Vi dois deles brigando por uma mísera latinha
jogada na arquibancada. Eles haviam chegado ao limite. Os
touros pararam de pular na arena, o locutor parou de berrar, as
latinhas vazias sumiram das arquibancadas, que de quase vazias
se esvaziaram por completo. Fiquei por alguns minutos naquela
arena de 35 mil assentos calados. Não havia aplausos para os
perdedores.
(...)
13º Passo
(...)
Sentamos no bar do terminal. O famoso rosto do
revolucionário Che Guevara estava pendurado na parede
engordurada. “Os poderosos podem matar uma, duas ou até
três rosas, mas nunca poderão deter a primavera” (assinado)
Che Guevara. “Bonita essa frase do Guevara”, comentei. O
velho dono do bar balançou a cabeça concordando. “Eu não
vou mais para Barretos”, Rafael olhava para as suas rosas
largadas em cima do balcão. E o nosso grande plano? E a grande
final do rodeio? Ano que vem. “Ano que vem eu vou”.
Compreendi que a palavra “ano que vem” era muito preciosa
para Rafael, que colecionava razões para continuar lutando,
para continuar vivendo. Ano que vem.
O velho dono do bar foi embora e foi substituído no balcão
pelo seu jovem filho. Eu não sabia o que dizer para Rafael,
porque normalmente era ele quem falava. Olhei para o jovem
cabeludo atrás do balcão e tentei quebrar o silêncio: “Bonita
essa frase do Guevara”. O jovem sorriu e disse que aquela frase
não era do Guevara. Era de outra pessoa que ele não se
recordava o nome. “Alguém teve a brilhante ideia de colocar
uma frase bonita junto com o rosto do Guevara, só pra poder
vender essa coisa pendurada aí”, ele explicou. Quem será que
havia escrito aquela frase bonita? Olhei para as rosas de Rafael
e me dei conta de quão anônimas elas eram. Ninguém se importa
com as suas rosas. Elas poderiam morrer, porque mesmo assim
a primavera nunca deixaria de chegar. Saí do bar, afirmando:
“Ainda assim é uma frase bonita”.
Anos depois, ainda não sei se aquela frase era realmente
de Guevara. Muitos acreditam que sim. Mas se essa frase tivesse
sido dita por um camponês sem nome? Perderia a sua beleza?
Quem se importa com as anônimas rosas de Rafael?
Caminhamos juntos até a plataforma. Eu assistiria à grande final
do rodeio de Barretos. Iria sozinho, não para vender rosas, mas
apenas porque eu não precisava esperar pelo ano que vem.
Rafael me deu o abraço mais apertado que seu braço enfaixado
permitiu. O ônibus partiu. E foi assim que eu o vi pela última
vez, caminhando sozinho pela plataforma vazia, abraçado às
suas rosas, que nunca morriam.
(...)
14º Passo
(...)
Cada galho balançando ao vento parecia me observar. Cada
ruído parecia sussurrar algo em uma língua estranha. Mas o
que mais me incomodava era saber que toda aquela floresta
que me cercava havia nascido apenas para morrer. Cada tronco
que subia em direção ao céu acabaria derrubado, cortado,
retalhado e triturado até virar celulose e finalmente papel. O
mesmo papel que agora conta a história de uma floresta
condenada desde o primeiro dia de vida. Será que esse também
é o destino dos seres humanos? Nascer apenas para morrer?
Não fazia sentido, mas aquela floresta havia nascido para isso.
Depois de alguns quilômetros floresta adentro, avistei a
clareira. Senti um arrepio ao perceber que as folhas em que eu
pisara da última vez haviam sumido. Uma larga faixa de terra
nua levava ao poço. Quem teria passado por ali e varrido as
folhas mortas do caminho? Ouvi o lamento do poço, aquele
estranho zumbido me chamando. “Absurdo”, tentei me
encorajar. Não havia nada a temer. Segui em frente até parar
na fronteira entre a floresta e a clareira. Lá estava o poço e
suas centenas de almas abandonadas. Lentamente, dei as costas
ao antigo cemitério e abri meus braços em cruz, em direção à
floresta. Fechei os olhos.
Senti uma estranha presença atrás de mim. Um calafrio
correu pela espinha, paralisando meu corpo. Os lamentos do
fosso pareciam se intensificar. Escutei vozes incompreensíveis,
sussurros e choros distantes. Minhas pálpebras se fechavam
com mais força. Apesar dos olhos cerrados, eu conseguia “ver”
tudo o que se passava às minhas costas. Estranhos vultos se
agarravam às paredes do poço, arrastando-se para fora dele.
Criaturas sem olhos nem pele saíam da escuridão, cambaleando
atrás de mim. Meus músculos se contraíam. Suor frio escorria
pelos poros da pele. As garras se aproximavam, lançando unhas
apodrecidas sobre minhas costas, até que fui agarrado
violentamente pelo medo. Senti como se os músculos
descolassem dos ossos, como se alguém quisesse roubar a
minha pele. Fui arrastado para dentro do poço, onde caí por
um longo tempo até chegar ao fundo. Gritei. E foi assim que o
medo passou por mim. Silêncio. Abri os olhos. Na minha frente,
a floresta. Atrás, o poço. E só.
O medo de ser esquecido, de morrer e não deixar saudades
era grande demais. Era esse o meu medo: viver uma vida inteira
apenas para ser esquecido depois, para sempre. Não, não se
pode morrer assim. Não se pode deixar que um trator passe por
cima de nossas existências e apague tudo como se nunca
tivéssemos vivido. Não, eu me recusava a isso. Eu me recusava
a viver em vão.
(...)
15º Passo
(...)
Ajoelhei e rezei. Não pedi proteção, não pedi perdão, não
pedi nada. Se merecesse proteção, estaria protegido. Se meus
pecados pudessem ser perdoados, seria perdoado. Se merecesse
receber algo, receberia. Bastava acreditar em Deus. Mas e se
Deus não existisse? Essa era uma dúvida que eu tentaria apagar
com meus passos. Tudo o que fiz, ajoelhado diante daquela
igreja, foi agradecer. Agradecer pela chance de pelo menos
tentar acreditar em meu destino.
O dia abandonou a praça. Sentei em um banco, sem saber
ao certo o que fazer. Um garotinho passou de mãos dadas com
a mãe e só largava dela para levar um punhado de pipoca doce
à boca. Lembrei-me dos dias em que era uma criança, e minha
mãe me levava à igreja. Depois da missa, ela costumava comprar
uma pipoca como aquela para mim. Eu queria aquela pipoca
de novo, queria voltar àquele tempo em que eu acreditava. O
garotinho parou, disse algo para a mãe e veio correndo em
minha direção. “Você quer pipoca, moço?”, o garotinho
estendeu o pacote. “Não, obrigado”, eu sorri. O garotinho sorriu
de volta, deu as costas e começou a andar. Depois de alguns
passos, ele voltou e disse: “Acho que o senhor tá com vergonha,
não é? Pode pegar, minha mãe dá outro pra mim”. O garotinho
deixou o pacote no meu colo e saiu correndo. E, de mãos dadas
com a mãe, dobrou a esquina e sumiu. Para mim, aquele foi um
pequeno milagre, como tantos outros que acontecem na vida e
sequer são percebidos.
(...)
16º Passo
(...)
Quando eu estava saindo da cidade, uma menininha olhou
para a minha mochila nas costas e perguntou: “Oi tio! Vai pra
onde?”. “Aparecida do Norte”, respondi sem vontade. “Por
quê?”, ela queria saber. Muitas pessoas vão para Aparecida
em romaria, para rezar aos pés da santa padroeira. Respondi
que estava em romaria. “A pé?”, seus olhos inquietos olharam
para os meus pés. Respondi que sim. “Por que não vai de
ônibus? Meu tio foi de ônibus porque ele disse que é muito
longe”, ela não entendia. Muitas pessoas vão a pé para
Aparecida para pagar uma promessa ou se redimir de algum
pecado. Respondi que era necessário fazer algum sacrifício para
173
pagar promessa ou pedir perdão. “Por quê?”, a menina não
desistia. Tentei virar o jogo e perguntei: “Por que quer saber?”
A menina respondeu: “Porque quero aprender as coisas”. “Por
quê?”, comecei a ser cruel. “Porque quando eu crescer, vou ter
que saber de tudo”. Quantos anos aquela garotinha tinha?
Queria que ela nunca crescesse, porque os adultos se
decepcionam quando aprendem que não há resposta para tudo.
“Preciso ir”, abandonei a menina sem resposta. Queria fugir
antes que ela dissolvesse a certeza do meu caminho e me
deixasse em dúvida sobre o sentido dos meus passos. Ela me
viu cambaleando, porque o meu estômago ainda doía. Acho
que percebeu a minha dor. “Tio”, eu ouvi ela me chamar. Virei
o rosto contrariado. A menininha se aproximou dizendo: “Acho
que Nossa Senhora é boazinha. Ela não vai ficar contente
quando ver que o senhor tá com dor. Não importa o que o senhor
fez de errado, se o senhor pediu desculpas e não vai fazer a
mesma coisa de novo, ela vai perdoar. Do mesmo jeito que
minha mãe me perdoa quando eu faço coisa errada e fico
arrependida. E não entendo porque tem que sofrer pra agradar
Nossa Senhora... Minha mãe não gosta quando me machuco ou
fico chorando”. Por que será que as crianças crescem? Uma
mulher gritou da porta de uma casa: “Eu já falei pra você não
ficar falando com estranhos, volta já pra cá!” A menina me deu
um ‘tchauzinho’ e foi pedir desculpas para sua mãe, com um
sorriso no rosto.
(...)
17º Passo
(...)
Cheguei a um povoado e bati palmas diante de uma casa. Minha
intenção era pedir para montar minha barraca debaixo de uma
tapera que guardava ferramentas agrícolas. Uma mulher que
morava na casa em frente perguntou o que eu queria. “Eu ia
pedir para acampar debaixo daquela cobertura”, respondi. “O
pessoal dessa casa está viajando”, ela informou. Um senhor
surgiu por trás da mulher e perguntou: “Por que quer ficar aí?”
Respondi que era um bom lugar para a minha barraca, porque
estava coberto. “Uai, se quer um teto vem pra cá”, ele disse
como se fosse a coisa mais natural do mundo, chamar um
estranho para dormir em sua casa. E talvez devesse ser.
Tirei meus sapatos cheios de lama e entrei meio sem jeito.
Eu estava ensopado e molhei todo o chão. Seu Joaquim e dona
Cídia me deram uma toalha e eu fui tomar banho. Como um
simples banho quente pode ser tão bom assim? Mais tarde, eu
fui convidado para um jantar bem temperado. Expliquei que
estava com dor de barriga e então me deram algo leve para
comer. Conversamos na cozinha protegida pela imagem do
Sagrado Coração de Jesus. Estava realmente acolhido naquele
lar.
De noite, aquecido por um macio cobertor, ouvia a
tempestade caindo impiedosamente sobre o telhado de amianto.
Olhei para a minha frágil e remendada barraca encostada no
canto do quarto. “Se eu estivesse dentro dela...”, tentei imaginar.
Poderia dizer que tive apenas sorte ao longo do caminho,
encontrando sempre comida e abrigo nos momentos em que
mais precisei. Mas não pensava dessa forma tão ingrata.
Durante a minha viagem pelo Caminho da Fé, eu não estava
reencontrando apenas a minha fé em Deus. Eu estava
reencontrando algo muito mais difícil de encontrar nos dias de
hoje: a fé nas pessoas. Afinal, se Deus se revelava para mim,
era justamente por meio de seus anjos sem asas, que Ele
colocava em meu caminho.
Antepenúltimo passo
(...)
Cruzamos pastos, bosques e riachos pela serra da
Mantiqueira, até chegarmos de noite na cidade de Santo Antônio
do Pinhal. Naquela cidade serrana cercada por araucárias, Adão
apertou a campainha da pousada Nippon. “Quer falar com
alguém?”, um japonesinho atendeu. Adão olhou para a criança
e respondeu com humor: “Ué? Não sei. Estou só apertando a
campainha pra ver se ninguém me atende”. A criança foi chamar
o pai. Olhando para aquele menininho ingênuo, lembrei-me de
mim mesmo.
Paternalmente, mais uma vez Adão se propôs a pagar um
quarto para mim, mas eu já havia conseguido um canto no amplo
salão de festas da pousada. Mesas e cadeiras brancas esperavam
para serem usadas em um canto do salão. A voz de Adão ecoou
pelo vazio. Ele me convidava para jantar e não aceitaria um
não como resposta, porque naquela noite teríamos comida
japonesa. “Se não vier comigo, quem vai me dizer o que eu
estou comendo?”, ele brincou.
No restaurante da pousada Nippon, pequenos arranjos
florais de ikebana descansavam sobre as mesas. Quadros
exibiam imagens da Terra do Sol Nascente. No cardápio havia
yakisoba, tempurá, yakimeshi... Lembrei-me da saborosa
comida da minha mãe. Uma música enka começou a tocar. Era
uma antiga canção japonesa que falava sobre saudades da terra
natal. E aquela era a mesma música que eu escutava com o meu
pai quando eu era criança. Ele sempre a tocava durante as
viagens de carro, em que eu me deitava no banco de trás e
olhava as estrelas passando pela janela. Eu reclamava: “Pai, eu
não gosto dessa música”. E ele respondia: “Quando crescer vai
aprender a ter saudades. Daí vai gostar dessa música”. E naquele
restaurante, naquela noite, eu gostei.
(...)
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